Festival de Almada <br>– resistir e vencer

Jorge Feliciano

O Fes­tival de Te­atro de Al­mada é uma vi­tória. É uma vi­tória da nossa Re­vo­lução, o grande motor do ideal posto em acção da des­cen­tra­li­zação e da de­mo­cra­ti­zação cul­tural. É uma vi­tória dos tra­ba­lha­dores das artes e da cul­tura que o con­ce­beram e edi­fi­caram. É uma vi­tória do povo e dos tra­ba­lha­dores, em par­ti­cular de Al­mada, que desde a pri­meira hora o aca­ri­nharam e de­fen­deram, e que, dessa forma, as­su­miram-se eles pró­prios, cons­tru­tores do seu Fes­tival. É uma vi­tória do Poder Local De­mo­crá­tico, da Câ­mara Mu­ni­cipal de Al­mada, desde sempre o prin­cipal e mais leal ga­rante da con­ti­nui­dade e cres­ci­mento do Fes­tival. Uma vi­tória da Com­pa­nhia de Te­atro de Al­mada e das di­fe­rentes ge­ra­ções de fa­ze­dores de te­atro que por ela foram pas­sando. Uma vi­tória do Te­atro, do Te­atro que es­colhe como fun­da­mento ético, es­té­tico e po­lí­tico da sua acção estar do lado da de­mo­cra­ti­zação cul­tural e não da sua mer­can­ti­li­zação. Ou, como diria o seu ac­tual di­rector ar­tís­tico, Ro­drigo Fran­cisco, «o que nos move é acharmos que um Fes­tival não é uma ne­go­ciata».

Pre­ci­sa­mente por se co­locar deste lado, numa real e me­ta­fó­rica margem es­querda, o Fes­tival de Al­mada sempre se fez en­quanto mo­vi­mento de re­sis­tência contra a des­va­lo­ri­zação e de­sin­ves­ti­mento a que a po­lí­tica cul­tural de di­reita o foi sempre ten­tando re­meter; e, também por isso, contra a su­posta (e anti-de­mo­crá­tica) al­ter­na­tiva ao fi­nan­ci­a­mento es­tatal que seria a «pe­ne­tração» do ne­gócio cul­tural – em­pre­en­dedor e cri­a­tivo pois claro! – num es­paço que sempre foi e tem de con­ti­nuar a ser de de­sen­vol­vi­mento da cul­tura in­te­gral do in­di­víduo, um es­paço de eman­ci­pação, trans­for­mação e li­ber­dade.

Em 33 edi­ções nunca o Fes­tival aban­donou a sua ló­gica de Ser­viço Pú­blico se­gundo a qual, por exemplo, du­rante muitos anos a as­si­na­tura que dá acesso todos os es­pec­tá­culos per­mitia aos jo­vens, através de um preço es­pe­cial, as­sis­tirem a todas as peças do Fes­tival a um valor médio in­fe­rior a um euro cada. Isto fora as muitas ac­ti­vi­dades de acesso gra­tuito a todos que o Fes­tival sempre pro­gramou. Apesar do in­ves­ti­mento do Es­tado ter vindo a de­crescer re­gu­lar­mente desde 1996 (só em 2011 ainda com o go­verno PS/​Só­crates o corte foi de 150 mil euros) o Fes­tival mantém no es­sen­cial estas ca­rac­te­rís­ticas de Ser­viço Pú­blico que nas pa­la­vras de Jo­a­quim Be­nite são ex­pressão do «di­reito a um cada vez maior en­ri­que­ci­mento cul­tural, o di­reito de todos a aceder aos ins­tru­mentos do pen­sa­mento e da re­flexão e ao de­sen­vol­vi­mento da per­so­na­li­dade ar­tís­tica, a par de me­lhores e mais justas con­di­ções ma­te­riais de vida».

Muitas his­tó­rias há para contar do Fes­tival mas há um mo­mento que não es­queço. Passou-se numa edição da se­gunda me­tade dos anos 90 em que foi mon­tado um se­gundo palco ex­te­rior onde havia apre­sen­ta­ções mais tar­dias. Acon­teceu no de­correr de uma peça de uma com­pa­nhia fran­cesa que re­pre­sen­tava (seria?) As Cri­adas de Jean Genet. Desde o início da peça vemos um per­so­nagem que corta lenha numa das ex­tre­mi­dades de cena. O ma­chado era bem forte e ra­chava troncos com enorme fa­ci­li­dade. Esta imagem per­ma­nece mas a sua im­por­tância vai-se dis­si­pando à me­dida que ou­tros acon­te­ci­mentos vão de­cor­rendo. Às tantas, o homem que cor­tava lenha vem ao centro do palco e co­loca-se de costas para o pú­blico. Num gesto co­lé­rico – ame­a­çando outro per­so­nagem? – eleva bem alto o ma­chado e neste mo­vi­mento a agu­çada e pe­sada lâ­mina solta-se do cabo e voa em di­recção à ban­cada re­pleta de gente. Ca­la­frio geral... O voo da lâ­mina entra em câ­mara lenta, na cara de todos o esgar hor­rí­fico da tra­gédia imi­nente. Fi­nal­mente a lâ­mina cai no seu des­tino, no meio do pú­blico im­pos­si­bi­li­tado de fugir. Ouve-se um sus­piro coral de alívio se­guido de uma ner­vosa gar­ga­lhada geral... A agu­çada e pe­sada lâ­mina que voou era, afinal, de es­ponja.



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